O Algarve e a Inquisição
A fundação da Inquisição Portuguesa insere-se numa estratégia de centralização do poder real. Até meados do Séc. XVIII, quando é minada por familiares oriundos do mundo do comércio, assume-se como um instrumento temível da aristocracia senhorial-clerical face a uma Europa ideologicamente dividida e frente ao poder do mundo mercantil, em Portugal muito identificado com os homens da nação dos cristãos-novos.
O rei D. João III empenhou-se vivamente na criação da Inquisição Portuguesa mas o seu verdadeiro organizador e protetor foi o cardeal D. Henrique, inquisidor-geral durante os primeiros quarenta anos.
O tribunal da Inquisição auto intitulava-se Santo Ofício. Reunia os poderes da Igreja e os poderes do braço secular ou do Estado. O cardeal D. Henrique, inquisidor-geral entre 1539 e 1580, regente, futuro rei de Portugal e o cardeal Alberto, inquisidor-geral de 1586 a 1593 e vice-rei, constituem os exemplos mais visíveis do entrelaçar dos dois poderes.
Embora o inquisidor-geral fosse nomeado simultaneamente pelo rei e pelo papa, a Inquisição Portuguesa atuava com inteira autonomia. O Conselho Geral mantém todos os poderes sem qualquer interferência externa. Das suas condenações à morte, implícitas na excomunhão maior, não há direito de recurso nem para o rei nem para o papa. Chega ao extremo de ameaçar com excomunhão maior o rei Filipe III de Portugal e faz pairar durante anos a mesma ameaça sobre o rei restaurador D. João IV.
As principais vítimas da Inquisição Portuguesa são os cristãos-novos cujos corpos constituem o principal combustível das fogueiras dos autos de fé celebrados nas Praças Grandes de Évora, Coimbra, Lisboa e Goa.
Os inquisidores passam a pente fino a escrita e as falas, procurando detetar qualquer pensamento herético ou maligno e semeiam escrúpulos entre a gente simples. Nos interstícios das palavras escritas e faladas são procurados sentidos ocultos inspirados pelo demónio.
Nos primeiros anos do Séc. XVII, em carta ao inquisidor-geral, escrevem os inquisidores de Évora: «O Algarve pede visitação. Bispo, frades, priores desse regno nos incitam com as suas cartas. Feito o auto, V. Senhoria mande que se visite, tratando primeiro da pessoa que faça a visitação, porque convém que seja prática nas cousas da inquisição e que faça jornada com autoridade e prudência, por ser esta a primeira que vai ao Algarve, que é cheio de gente cavaleirosa, segundo dizem, e honrada.»
Anote-se a íntima relação entre a igreja do Algarve e a Inquisição.
A visitação implica entrada solene nas cidades e vilas e pregação nas igrejas, convidando-se expressamente os fiéis à auto-denúncia e à denúncia de terceiros e procedendo à leitura do Édito de Fé, uma espécie de catálogo de heresias, de práticas e proposições contrárias à fé.
A Inquisição de Évora entra tarde no reino do Algarve. A primeira ofensiva atinge Vila Nova de Portimão na última década do Séc. XVI, embora os primeiros condenados à morte, Catarina Fernandes, o mercador Gonçalo Martins Leão, de Faro, e sua mulher Isabel Nunes, bem como Inês Nunes e Violante Gramaxa, mulher de médico, ambas de Portimão, sejam queimadas no final da década de 80.
Deste ataque a Portimão chegam até nós 132 processos de naturais e mais 87 de vítimas residentes naquela vila algarvia. As mulheres são a maioria. Uma delas, Grácia Gonçalves, retirada numa estalagem, vê ao longe o filho e o genro apertarem às escondidas os beiços com as mãos, dando a entender que não fale. Depois, quando a levam, vêm beijar-lhe a mão na frente de todos. Grácia Gonçalves fica calada e como negativa é queimada na Praça Grande de Évora em 31 de Março de 1591.
A segunda ofensiva atinge a cidade de Faro na terceira década do Séc. XVII. Restam-nos 227 processos de naturais e 210 de vítimas aí residentes. As mulheres levam a palma. O número de processos dá melhor a dimensão da tragédia se nos lembrarmos que, em 1591, Faro conta com 1360 chefes de família.
A terceira localidade mais atingida, nas terceira e quarta décadas do Séc. XVII, é Loulé com 116 naturais com processo e 70 residentes, seguida de Albufeira, Lagos e Tavira.
Até 1668, o número de processos da inquisição de Évora referentes ao Algarve atinge 638 naturais e 497 residentes, no total de 1135 processos.
Aos processos há que acrescentar as prisões sem processos e principalmente os fugitivos, cujo número não é inferior ao dos que caem nas casinhas do cárcere. A Faro, na década das prisões, vêm barcos da Andaluzia durante a noite recolher e transportar os fugitivos. Os itinerários de fuga ligam diferentes vezes Faro a Olva, por barco; Faro a S. Lucar de Barrameda; Faro a Cádis, fuga coletiva por barco; Faro a Sevilha; Faro a Málaga; Faro a Redondela; Faro a Aiamonte por terra e rio.
Numa carta, datada de 19 de Dezembro de 1633 e dirigida aos inquisidores de Évora, um denunciante não identificado afirma: «tinham aportado à vila de Redondela cinco ou seis barcadas de fugitivos de Faro; e o homem que lhes proporcionara a fuga e os açoitava na vila, voltara à cidade com as chaves de casa dos fugitivos a fim de salvar, pela calada, os objetos mais preciosos».
A fuga abre um perigoso e doloroso mundo de aventuras. Pero Lopes, de Faro, sabe ler e escrever e ler e entender o latim. Preso pela Inquisição e depois solto, embarca fugindo para o Brasil e daí para a América Espanhola. Reside sucessivamente em Cuzco, Velez, Junia, Cartagena, Panamá e Peru. Interrogam-no mais tarde em Guayaquil, onde vide próspera colónia de algarvios. Lembra aos inquisidores que em Lagos lhe ficara a mulher e uma filha que andaria agora pelos 8 anos.
As vítimas da Inquisição provêm dos meios urbanos, vêm em grande número da tal gente cavaleirosa e honrada. São médicos, advogados, mercadores, gente que vive por uma fazenda, um tangedor de charamela, um bedel do cabido, familiares de tabeliães e de um escrivão do judicial, alguns mareantes, uma filha de João Martins, pintor de Faro, homens dos ofícios.
Nesta cidade, prendem um menino de 12 anos, Gaspar Dias, e mantêm-no nas casinhas até aos 14. Nesta cidade, sujeitam-no a tormento. Prendem, também, cinco meninas de 15 anos. Pedro Machado, preso aos 10 anos, sai com 15 no auto-de-fé de Novembro de 1640, depois de 5 anos de cárcere.
As acusações são variadas. Um barbeiro de Alcantarilha é preso por afirmar em público que não havia de confessar-se a outro homem, que o sacerdote não tinha mais que ele senão o dizer missa. O cura de Odeleite também se vê em maus lençóis, agora sob a acusação de «somítego». Por sua vez, o jovem marinheiro de Tavira, Manuel Ferreira, aprisionado por três galeotes turcos na boca do estreito de Gibraltar quando pesca cação, é vendido em Argel como escravo a um renegado português, natural do termo de Tavira e que aí adoptara o nome de Mamim. Manuel Ferreira é resgatado pelos padres de Valência mas agora aí está ele na sala de despacho da Inquisição de Évora porque não tivera tento na língua. «Deus nunca fizera cousa boa», exclamara. Os inquisidores deixam-no sair e pintam em palavras o seu retrato: alto, magro, roupeta e calça de cor azul, capa parda de Saragoça, barrete vermelho na cabeça e às costas o alforge com que pedia esmola pelas portas».
Mas quem mais sofreu na fazenda, na honra e na carne, com a Inquisição, foram os cristãos-novos, acusados de judaizarem em segredo. Grácia Mendes, sobrinha de um advogado de Faro, assiste à prisão da família. Detêm-na com 12 anos. Acusam-na de rezar pelos mártires que os familiares do Santo Ofício prendem. Quando vê passar um familiar, esconde-se.
Alguns cristãos-novos assumem-se como judeus de religião mas podem contar-se pelos dedos. O mercador de Faro, Francisco Nunes, é queimado no auto-de-fé de 1637 em Évora. Caminha para a fogueira rezando o salmo 50 «Ouve, povo meu, e eu falarei; ó Israel, e eu, Deus, o teu Deus, protestarei contra ti».
Pelo seu lado, Francisco Fernandes, de Lagos, filho de mercador, anda por Espanha e Itália, e também é queimado vivo em Évora, no auto-de-fé de 1 de Abril de 1629. Tinha trinta e poucos anos. Não havia poder no mundo nem saber de teólogos que o demovessem da fé judaica, dizia. E que a Inquisição não ousava queimá-lo por temer que, com a sua morte, muitos se convertessem à lei de Moisés.
A imensa maioria dos cristãos-novos assume-se como cristãos. Diogo de Tovar e Manuel Nunes, ambos de Faro, são presos e depois soltos sem pena pela Inquisição de Évora. A cidade recebe-os com grandes manifestações de regozijo. Vêm esperá-los a cavalo e a pé. Nem em procissão ou novena se juntava tanta gente. Lançam foguetes nas ruas em que os presos moram. «Só falta correrem-se os touros», afirma um denunciante. E vão de novena a Nossa Senhora da Esperança, onde um padre cristão-novo reza missa.
A Inquisição apodera-se de bens importantes pertencentes às suas vítimas algarvias. A um cunhado do sargento-mor de Albufeira expropriam pelo menos 500 mil réis de vinhos, escravos, figo, trigo e créditos; de um Álvaro Gramaxo, de Portimão, sobrinho de um riquíssimo mercador de Cartagena das Índias, arrecadam dois milhões de réis.
Se a Restauração cortou abruptamente os laços que ligavam o litoral algarvio à Andaluzia e se as frotas espanholas da América deixaram de procurar o abrigo dos portos do Algarve, não se pode ignorar também o papel predador da Inquisição sobre as cidades e as vilas marítimas. Se considerarmos os dados demográficos, só no Séc. XVIII o litoral algarvio parece dar sinais de recuperar da estagnação e da crise.